Calvino em Genebra: reformador ou ditador?

terça-feira, 13 de junho de 2017

Calvino em Genebra: reformador ou ditador?



A História tem deixado de herança debates intermináveis sobre idéias, eventos e homens. Estes formam um esquadrão de personagens que jamais serão perfeitamente encaixados na galeria de heróis ou vilões, pois sempre haverá quem os acuse ou defenda de algo não totalmente esclarecido. Definitivamente, Calvino é um desses enigmas. Até hoje o reformador genebrino afigura-se como um personagem de destaque na história do protestantismo, desenvolvendo uma profunda defesa da fé e revelando uma genialidade singular. Se você já teve a oportunidade de ler Calvino, certamente reconhece a incrível capacidade desse pensador.
Vale considerar que, admirando-o ou não, Calvino foi um marco na história não só de Genebra, mas de toda a Europa. A cidade suíça já era oficialmente protestante antes da chegada do reformador, contudo, carecia de uma liderança forte para que mudanças pudessem ser, efetivamente, implantadas. Antes de Calvino, Genebra era uma cidade “bagunçada”, com prostituição e bebedices generalizadas. Stier, Poor e Orvis (2008) citam que sua fama se espalhou como a mais fedorenta da Europa. Boyce e Ryken (2014) dizem:

“Entre as depravações comuns na cidade rica estavam a embriaguez, conduta desordeira, os jogos de azar, a prostituição e o adultério. Os cidadãos de Genebra eram conhecidos por ocasionalmente correrem nus pelas ruas entoando canções vulgares e até mesmo blasfemas. Práticas comerciais desleais, como a usura, eram comuns. A cidade também era perturbada por dissensões que um observador descreveu como ‘facções ímpias e perigosas’.”

Harkness (1958) afirma que Calvino não implantou uma Teocracia em Genebra, mas um “governo bibliográfico”. Ou seja, as Escrituras assumiram uma posição-chave no governo da cidade, tendo em Calvino a figura de autoridade responsável pela correta interpretação e aplicação no dia-a-dia da cidade. De acordo com Stier, Poor e Orvis (2008), a estratégia dos reformadores na administração dessas cidades seguiam 3 pilares:

1. Pregar o evangelho aos indivíduos para que as pessoas possam ser salvas e possam entrar no processo de transformação, e restabelecer a pureza na igreja de acordo com a Palavra de Deus.
2. Ensinar a cidade, para que as pessoas saibam como viver, as autoridades saibam como governar, e todos saibam como trabalhar dentro de suas esferas; e
3. Sistema de prestação de contas para os indivíduos e líderes em cada área da sociedade, para que os ensinamentos não ficassem somente na teoria, mas que fossem aplicados em todas as áreas da vida.

A partir dessa “reviravolta” espiritual, a cidade deu um salto significativo em sua qualidade de vida. Pela primeira vez, houveram investimentos maciços na educação e saúde. Crianças passaram a freqüentar regularmente a escola, hospitais se tornaram acessíveis aos mais pobres e, devido ao crescente número de protestantes fugindo das perseguições católicas em outros países, a ação social na cidade também se tornou uma prática contínua. Há relatos, inclusive, de que Calvino hospedava muitos desses refugiados em sua própria casa.
Contudo, a história deixou registrado um lado obscuro de toda essa mudança. Há quem acuse Calvino de ter exercido um poder despótico, controlando indevidamente a vida dos cidadãos da cidade. Robert Wright[1] diz que Calvino governou Genebra tão brutalmente quando Joséf Stalin, na Rússia. A maior acusação é a de hipocrisia. Segundo os críticos, Calvino e seus seguidores protestaram veementemente contra a perseguição protestante em países como França, mas ao assumirem a liderança do governo em Genebra, teriam imposto perseguição ainda mais dura. Durant (1950) afirma que:

“Censura de imprensa foi usada e ampliada sobre os Católicos e precedentes seculares: livros…com tendências imorais foram banidos…falar desrespeitosamente de Calvino ou do clero era crime. A primeira violação dessas ordens era punida com uma advertência, violações posteriores com multas, persistir na violação com prisão ou banimento da cidade. Fornicação era punida com o exílio ou afogamento; adultério, blasfêmia ou idolatria com a morte…uma criança foi decapitada por agredir seus pais. Nos anos de 1558-1559 houve 414 processos por ofensas morais; entre 1542 e 1564 houve 76 banimentos e 58 execuções; a população de Genebra era na época de 20.000 pessoas.”

Hunt (2015) afirma que a imposição de regras rígidas de controle social sob o governo de Calvino parece uma tentativa, incoerente, de estabelecer o reino de Deus na terra mediante os próprios esforços, e completa:

Aparentemente, ele era ignorante do fato de que o senso comum de que uma escolha genuína é essencial se o homem quer amar e obedecer a Deus ou mostrar uma compaixão real aos seus companheiros. Mas se esforço determinado de fazer os cidadãos de Genebra obedecer, Calvino refutou suas próprias teorias de Eleição Incondicional e Graça Irresistível. Aparentemente, o que ele provou, por anos de intimidação e força totalitária, foi o primeiro dos cinco pontos do calvinismo, a Depravação Total.”

É importante lembrar que não faltam vozes que o defendam, especialmente de teólogos que herdaram sua tradição teológica. Allister MacGrath[2] diz:

“Calvino não era um ditador de Genebra que governava a população com mão de ferro. Ele não foi sequer cidadão de Genebra em todo o tempo em que lá ficou, tendo assim seu acesso à autoridade política negado. Sua condição era simplesmente a de um pastor que não estava em posição de ditar ordens às autoridades magistradas que administravam a cidade. De fato, essas autoridades retiveram até o fim o direito de demitir Calvino, mesmo tendo optado por não exercer esse direito. Como membro do Consistório, ele era certamente capaz de fazer representações à magistratura em nome dos ministros — representações que, porém, eram ignoradas com freqüência… A influência de Calvino sobre Genebra consistia, em última análise, não em sua posição jurídica formal (que era insignificante), mas em sua autoridade pessoal considerável como pregador e pastor.”

Enfim, não pretendemos bater um martelo a respeito de questão tão difícil e que ocupa os debates da História por quase 500 anos. Calvino deixou um legado teológico imensurável para igreja, foi um líder e visionário em seu tempo e suas qualidades são reconhecidas, inclusive, por seus críticos[3]. Várias acusações feitas a ele são intensas e, se verdadeiras, revelariam um caráter sombrio do reformador. Contudo, jamais passaremos de suposições, visto que nossa percepção está nublada para acontecimentos tão historicamente distantes.


REFERÊNCIAS

BOICE, James M.; RYKEN, Philip G. As doutrinas da graça: resgatando o verdadeiro evangelho. Anno Domini, 2014.

DURANT, Will. Caesar and Christ. Pt. III of The History of Civilization. New York: Simon and Schuster, 1950

HARKNESS, Georgia. John Calvin: The Man and his Ethics. New York: Abingdon Press, 1958.

HUNT, Dave. Que amor é este? Edição – São Paulo: Editora Reflexão, 2015.

STIER, Jim; POOR, Richlyn; ORVIS, Lisa. Venha Teu Reino. Editora Jocum Brasil, 2008.





[1] Ensaísta e escritor americano.
[2] Citação encontrada no livro de Boice (2014).
[3] Hunt (2015) reconhece que “ele despendeu a si mesmo e encurtou a sua vida visitando doentes, cuidado do rebanho e pregando continuamente.”

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