A História tem deixado de herança
debates intermináveis sobre idéias, eventos e homens. Estes formam um esquadrão
de personagens que jamais serão perfeitamente encaixados na galeria de heróis
ou vilões, pois sempre haverá quem os acuse ou defenda de algo não totalmente esclarecido.
Definitivamente, Calvino é um desses enigmas. Até hoje o reformador genebrino
afigura-se como um personagem de destaque na história do protestantismo,
desenvolvendo uma profunda defesa da fé e revelando uma genialidade singular.
Se você já teve a oportunidade de ler Calvino, certamente reconhece a incrível
capacidade desse pensador.
Vale considerar que, admirando-o ou
não, Calvino foi um marco na história não só de Genebra, mas de toda a Europa.
A cidade suíça já era oficialmente protestante antes da chegada do reformador,
contudo, carecia de uma liderança forte para que mudanças pudessem ser,
efetivamente, implantadas. Antes de Calvino, Genebra era uma cidade
“bagunçada”, com prostituição e bebedices generalizadas. Stier, Poor e Orvis (2008) citam
que sua fama se espalhou como a mais fedorenta da Europa. Boyce e Ryken (2014) dizem:
“Entre
as depravações comuns na cidade rica estavam a embriaguez, conduta desordeira,
os jogos de azar, a prostituição e o adultério. Os cidadãos de Genebra eram
conhecidos por ocasionalmente correrem nus pelas ruas entoando canções vulgares
e até mesmo blasfemas. Práticas comerciais desleais, como a usura, eram comuns.
A cidade também era perturbada por dissensões que um observador descreveu como
‘facções ímpias e perigosas’.”
Harkness (1958) afirma que Calvino
não implantou uma Teocracia em Genebra, mas um “governo bibliográfico”. Ou
seja, as Escrituras assumiram uma posição-chave no governo da cidade, tendo em
Calvino a figura de autoridade responsável pela correta interpretação e
aplicação no dia-a-dia da cidade. De acordo com Stier, Poor e Orvis (2008), a estratégia dos
reformadores na administração dessas cidades seguiam 3 pilares:
1. Pregar o evangelho aos indivíduos para que
as pessoas possam ser salvas e possam entrar no processo de transformação, e
restabelecer a pureza na igreja de acordo com a Palavra de Deus.
2. Ensinar a cidade, para que as pessoas
saibam como viver, as autoridades saibam como governar, e todos saibam como
trabalhar dentro de suas esferas; e
3. Sistema de prestação de contas para os
indivíduos e líderes em cada área da sociedade, para que os ensinamentos não
ficassem somente na teoria, mas que fossem aplicados em todas as áreas da vida.
A partir dessa “reviravolta”
espiritual, a cidade deu um salto significativo em sua qualidade de vida. Pela
primeira vez, houveram investimentos maciços na educação e saúde. Crianças
passaram a freqüentar regularmente a escola, hospitais se tornaram acessíveis
aos mais pobres e, devido ao crescente número de protestantes fugindo das
perseguições católicas em outros países, a ação social na cidade também se
tornou uma prática contínua. Há relatos, inclusive, de que Calvino hospedava
muitos desses refugiados em sua própria casa.
Contudo, a história deixou
registrado um lado obscuro de toda essa mudança. Há quem acuse Calvino de ter
exercido um poder despótico, controlando indevidamente a vida dos cidadãos da
cidade. Robert Wright
diz que Calvino governou Genebra tão brutalmente quando Joséf Stalin, na
Rússia. A maior acusação é a de hipocrisia. Segundo os críticos, Calvino e seus
seguidores protestaram veementemente contra a perseguição protestante em países
como França, mas ao assumirem a liderança do governo em Genebra, teriam imposto
perseguição ainda mais dura. Durant (1950) afirma que:
“Censura de imprensa foi usada e ampliada
sobre os Católicos e precedentes seculares: livros…com tendências imorais foram
banidos…falar desrespeitosamente de Calvino ou do clero era crime. A primeira
violação dessas ordens era punida com uma advertência, violações posteriores
com multas, persistir na violação com prisão ou banimento da cidade. Fornicação
era punida com o exílio ou afogamento; adultério, blasfêmia ou idolatria com a
morte…uma criança foi decapitada por agredir seus pais. Nos anos de 1558-1559
houve 414 processos por ofensas morais; entre 1542 e 1564 houve 76 banimentos e
58 execuções; a população de Genebra era na época de 20.000 pessoas.”
Hunt
(2015) afirma que a imposição de regras rígidas de controle social sob o
governo de Calvino parece uma tentativa, incoerente, de estabelecer o reino de
Deus na terra mediante os próprios esforços, e completa:
“Aparentemente, ele era ignorante do fato de
que o senso comum de que uma escolha genuína é essencial se o homem quer amar e
obedecer a Deus ou mostrar uma compaixão real aos seus companheiros. Mas se
esforço determinado de fazer os cidadãos de Genebra obedecer, Calvino refutou suas
próprias teorias de Eleição Incondicional e Graça Irresistível. Aparentemente,
o que ele provou, por anos de intimidação e força totalitária, foi o primeiro
dos cinco pontos do calvinismo, a Depravação Total.”
É
importante lembrar que não faltam vozes que o defendam, especialmente de
teólogos que herdaram sua tradição teológica. Allister MacGrath
diz:
“Calvino não era um ditador de Genebra que
governava a população com mão de ferro. Ele não foi sequer cidadão de Genebra
em todo o tempo em que lá ficou, tendo assim seu acesso à autoridade política
negado. Sua condição era simplesmente a de um pastor que não estava em posição
de ditar ordens às autoridades magistradas que administravam a cidade. De fato,
essas autoridades retiveram até o fim o direito de demitir Calvino, mesmo tendo
optado por não exercer esse direito. Como membro do Consistório, ele era
certamente capaz de fazer representações à magistratura em nome dos ministros —
representações que, porém, eram ignoradas com freqüência… A influência de
Calvino sobre Genebra consistia, em última análise, não em sua posição jurídica
formal (que era insignificante), mas em sua autoridade pessoal considerável
como pregador e pastor.”
Enfim,
não pretendemos bater um martelo a respeito de questão tão difícil e que ocupa
os debates da História por quase 500 anos. Calvino deixou um legado teológico
imensurável para igreja, foi um líder e visionário em seu tempo e suas
qualidades são reconhecidas, inclusive, por seus críticos.
Várias acusações feitas a ele são intensas e, se verdadeiras, revelariam um
caráter sombrio do reformador. Contudo, jamais passaremos de suposições, visto
que nossa percepção está nublada para acontecimentos tão historicamente
distantes.
REFERÊNCIAS
BOICE,
James M.; RYKEN, Philip G. As doutrinas
da graça: resgatando o verdadeiro evangelho. Anno
Domini, 2014.
DURANT, Will. Caesar and Christ. Pt. III of The
History of Civilization. New York: Simon and Schuster, 1950
HARKNESS, Georgia. John Calvin: The Man and his Ethics. New
York: Abingdon Press, 1958.
HUNT, Dave. Que amor é este? Edição – São Paulo: Editora
Reflexão, 2015.
STIER, Jim; POOR, Richlyn;
ORVIS, Lisa. Venha Teu Reino. Editora Jocum Brasil, 2008.